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sábado, 27 de fevereiro de 2010

Raimundo Quintal: "Alertei para o que podia acontecer e chamaram-me inimigo da Madeira"




"O conhecido geógrafo e investigador madeirense Raimundo Quintal, presidente da Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal e ex-vereador do Ambiente da câmara da cidade, afirma em entrevista ao Expresso que alertou várias vezes as autoridades, nos últimos anos, para o desastre que poderia ocorrer na ilha, mas chamaram-lhe "fundamentalista, radical e inimigo da Madeira".


O que correu mal no ordenamento do território para acontecer a catástrofe na Madeira?

Em primeiro lugar é preciso dizer que, por muito bem ordenado que estivesse o território, com a gravidade do que ocorreu na manhã de 20 de Fevereiro e somando ao que vem a chover desde Dezembro, haveria sempre consequências, mortos e destruição. Disso não tenho dúvidas.
Mas a meu ver o que correu mal foi o facto de se ter acreditado, desde há muitos anos, que apenas com obras de construção civil se resolvem os problemas dos cursos de água. Não é verdade. Alguns casos poderiam ter-se evitado se dentro dos leitos das ribeiras não existissem britadeiras e materiais.

Pode dar alguns exemplos?

Olhe, no sítio da Meia Légua, na Ribeira Brava, há um estaleiro de uma conhecida empresa de construção civil com máquinas e muitos materiais para apoiar a Via Expresso, e tudo veio por ali abaixo até ao mar.
E numa das ribeiras que atravessa o Funchal, a Ribeira de Santa Luzia, há uma empresa no leito de cheia, a Brimade, com uma pedreira, uma britadeira e uma central de betão, e desde há muitos anos que se arrasta ali, extrai pedra da própria ribeira e deposita aí os materiais. Nos oito anos que estive na Câmara, por várias vezes a autuei, levei a tribunal porque não pagava e num dos julgamentos até solicitei que fossem ao terreno, mas infelizmente a juíza foi lá e arquivou o processo. E já estão a fazer agora uma nova central de betão!

Mas era expectável o que se passou?

Era. Não basta fazer muralhas nas ribeiras. Não tenho dúvida que muitas das muralhas que foram feitas contribuíram para minimizar os efeitos das cheias. Mas ninguém me venha dizer que a cobertura do troço final da Ribeira de S. João, junto ao Centro Comercial do Dolce Vita, no Funchal, não tinha um erro grave.
Eu avisei antes e chamaram-me fundamentalista, radical, inimigo da Madeira. Infelizmente vi acontecer o que eu escrevi várias vezes em artigos e o que disse num programa na RDP Madeira, bem como na televisão a 28 de Outubro de 2007.
Outro exemplo: há dois anos houve uma derrocada na Ribeira dos Corridos que matou dois homens, que estavam no estaleiro de uma empresa. Um mês antes eu tinha chamado a atenção para o problema num telejornal da RTP Madeira (a 28 de Outubro de 2007).
Na noite do acidente fui comentar à televisão o que tinha acontecido mas apontei outros casos, como uma enorme padaria (a maior da Madeira) que estava a ser construída no sítio da Fundôa, no Funchal, na vertente oriental da Ribeira de Santa Luzia, e disse que essa padaria estava numa zona de elevado risco, nunca devia ter sido autorizada, mas ainda estão a tempo de o impedir. Pois agora, com as chuvadas, houve uma enorme derrocada e uma parte da padaria desapareceu.

A sua experiência na Câmara do Funchal permite-lhe perceber melhor a enxurrada que varreu a ilha?
Quando se apontam os problemas antes de acontecer a desgraça dizem que há má vontade, que não se é amigo da Madeira. Mas eu estou muito à vontade, porque estive oito anos como vereador independente do Ambiente na Câmara do Funchal, e fui para lá pouco depois das cheias de 1993 (em Janeiro de 1994).
E sei bem o que foi preciso lutar para termos as ribeiras melhor geridas, e não apenas com obras de construção civil, mas iniciando os trabalhos de reflorestação e abrindo caminho para a própria autoregeneração da vegetação indígena.
Possivelmente, se isso não tivesse acontecido, hoje tínhamos consequências ainda mais graves. Não se pode dizer que isto é culpa de A, B ou C. Mas nem tudo o que se fez foi bem feito por quem tem responsabilidades nesta terra. Cometeram-se erros, também se fizeram coisas bem feitas, mas o que não foi bem feito não deve ser reconstruído.
Não posso admitir que venha dinheiro do Fundo de Solidariedade da União Europeia para voltar a fazer a rotunda em frente ao Centro Comercial Dolce Vita, no Funchal, para apoiar empresários com estaleiros dentro da ribeira.

E então o que propõe?

Proponho que venha dinheiro do Fundo de Solidariedade para recuperar as veredas que vão permitir novamente o turismo de montanha, para recuperar as levadas, para recuperar acessos, para construir casas e haver coragem de dizer que não é possível construir mais em determinados sítios onde existem riscos de escorregamentos, ou que estão em leito de cheia.
A melhor estratégia para o grande trabalho de recuperação da Madeira seria aplicar a mesma metodologia que foi usada para os Açores aquando do sismo de 1 de Janeiro de 1980.
Neste caso, naturalmente, com a devida adaptação porque na altura não estávamos na União Europeia mas a recuperação levada a cabo foi exemplar, apesar de não haver muitos meios financeiros, e com uma enorme competência, com uma equipa multidisciplinar a trabalhar e liberta das colorações político-partidárias.


Como foi possível construir em leito de cheia e em locais de risco de derrocadas sem violar as directivas europeias?

Muitas das obras de canalização das ribeiras foram feitas em pleno Terceiro Quadro Comunitário de Apoio (com o apoio do Feder - Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional) e ao abrigo dos programas de defesa do Ambiente. Algumas dessas obras foram bem feitas, foram importantes para defender localidades, tanto no Funchal como fora do Funchal.
Mas outras não. As obras foram autorizadas e financiadas e passaram no Tribunal de Contas e tudo foi feito de forma legal. Mas possivelmente o conceito de leito de cheia varia consoante os técnicos que dão os pareceres. E sabe bem que os estudos de impacto ambiental são encomendados pelos promotores das obras, é assim em todo o país...


O desastre da Madeira foi um fenómeno extremo relacionado com o aquecimento global?

Estamos integrados numa grande região mediterrânica que é caracterizada por estados do tempo que têm picos de secura intercalados com picos de precipitação no Outono e Inverno. O que aconteceu agora aconteceu em 1803 com muito maior violência. Isto é um fenómeno que ao longo da história da Madeira tem ocorrido.
Os estudos que eu conheço para esta área, incluindo os liderados pelo professor Filipe Duarte Santos, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (o Projecto CLIMAAT), apontam para que neste século os períodos de secura sejam mais intensos e que estas chuvas violentas venham a acontecer em intervalos mais curtos.
O que aconteceu na Madeira está intimamente ligado às alterações climáticas? Não gosto de especular. O que é verdade é que temos vindo a notar estes problemas e, por um lado, há a Natureza com extrema violência mas, por outro, há a arrogância de alguns pigmeus que sempre afirmaram que dominavam a Natureza.


Acha que as ajudas financeiras da União Europeia e da Administração Central serão bem aplicadas na reconstrução da Madeira?

Julgo que seria importante ter uma forma de intervenção diferente. Há que recuperar algumas estruturas, sobretudo viárias, muitas delas têm que ter o mesmo traçado, mas há situações em que voltar a construir no mesmo sítio é estar a deitar dinheiro pela ribeira a baixo.
A rotunda junto ao Dolce Vita do Funchal não pode jamais ser refeita da maneira como estava. É completamente errado voltar-se a cobrir um troço final da Ribeira de S. João com cerca de 200 metros. Não pode ser!
A União Europeia deveria ter uma participação externa de forma a arbitrar claramente estas situações. Se não, tenho muito receio que a actuação venha a ser profundamente condicionada pelas empresas de construção civil.
As empresas são necessárias neste momento, sem dúvida, e há a meu ver um trabalho extraordinário de colocar novamente a água debaixo das pontes. Há um efeito perverso de relançamento da economia com este desastre, porque o desemprego na construção civil vai baixar, mas é mais do que natural que assim seja.
Muitas das muralhas das ribeiras que foram feitas são importantes para protegerem as pessoas que vivem de um lado e do outro, mas há casos em que só há muralha numa margem e na outra não, é escarpada, e quando a enxurrada passou não encontrou resistência aí e houve desmoronamentos, o que mostra que a construção não foi feita da melhor maneira.


Deveria pensar-se num plano global moderno para o Funchal, adaptado à situação actual, do género do plano do brigadeiro Oudinot aplicado depois do desastre de 1803?

Os tempos hoje são outros. O brigadeiro Oudinot veio para a Madeira, orientou a canalização do troço final das ribeiras, as muralhas ainda aí estão, e na altura previa-se a construção da cidade nova na zona planáltica a leste da baixa do Funchal. Isso só aconteceu muito mais tarde, onde estão os hotéis, o casino, etc., mas não houve essa nova centralidade, como estava previsto. Era uma visão que apontava para uma maior fixação dos habitantes do Funchal fora das zonas de risco. Hoje a realidade é completamente diferente e não há hipótese nenhuma de aplicar essa ideia. "





No fim desta página há alguns comentários que são capazes de causar perplexidade isto é um ponto que achei conveniente referir, há alguns que roçam até o cómico.

Resumindo consegue ver-se que na ilha da Madeira, a par de outros sítios em Portugal, há construção clandestina ou até legal mas no entanto em zonas proíbidas do ponto de vista do risco - quer seja risco de cheia, risco de desabamento de terras, etc. Há ainda também um Governo estabelecido e "de estacas bem presas ao chão" que não liga senão ao turismo, ao dinheiro e ao dinheiro e se isola do continente quando o seu representante barafusta estupidamente. Uma ilha que é uma das maravilhas naturais do mundo, tem o pior presidente possível.

Raimundo Quintal alerta e bem que estas tragédias quando vêm, vêm em força e brutalidade, logo são inevitáveis, o que não significa que não se possa trabalhar na prevenção de modo a minimizar as tragédias.

Pior do que não prevenir (para os que dizem que só se critica e não se apresenta soluções, ainda antes de corrigir o que está mal, há que não estragar o que está bem) é ajudar à tragédia e piorar, como os exemplos das centrais de betão no texto acima.

Referido e bem que a floresta absorve muita da água devolvendo-a em forma de vapor de água à atmosfera bem como segurando as terras através do sistema radicular.

Estudos de impacto ambiental solicitados pelos próprios interessados na construção e respectivos louros parece-me sem dúvida racional ...

Daí resulta que numa situação de cheia existam infra-estruturas, que por acaso, estão onde a água se estabelece, ou num desabamento, estão onde a terra se acomoda.

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